quarta-feira, 30 de abril de 2008

ONI(M)POTÊNCIA DIVINA



Não foi Descartes quem disse que , se algo tem uma falha, dá-nos o direito de duvidar dele por inteiro? Baseado nisso, Evaldo duvidava da onipotência de Deus.
- Existe pelo menos uma coisa que, com certeza, Deus não pode fazer.
Para provar a tese, levou seus colegas da academia filosófica à catedral e, em frente do altar,e, em voz alta , fez o pedido , a seu ver, irrealizável pela providencia divina:
- Quero ser Deus!

DIÁRIOS IMAGINÁRIOS



Se tivesse um diário, ele escreveria o seguinte: “ Passei 30 anos desejando-a, querida vizinha, mas nunca tive coragem de falar-lhe, sequer de olhá-la. Eu a possui apenas mentalmente, gozando de fato em incontáveis masturbações. Não quis nenhuma outra mulher; morri virgem, mas satisfeito sexualmente”.
Se ela tivesse um diário, escreveria o seguinte: “ Tive muitos homens em minha cama, vizinho; e mulheres também. Gozei, de fato, de todas as maneiras possíveis, mas, sem nunca conseguir sua atenção, morri frustrada sexualmente”.

JULGAMENTO



- Esse cara matou e estuprou seis mulheres.Vamos matá-lo aqui mesmo.
- Não. Somos policiais e temos que cumprir a lei. Ele tem direito à defesa.
- As mulheres que ele matou não tiveram.
- É um psicopata, sem noção do sofrimento que infrige.
- Quando nós o cercamos, ele se entregou sem resistência. Por quê?
- Ora, porque temia que o agredíssemos ou o matássemos.
- Então ele tem noção do sofrimento que lhe poderia ser infrigido ?
Na manhã seguinte , o homem, morto a tiros, foi achado no meio da mata.

terça-feira, 29 de abril de 2008

FUROS



O editor-chefe decidira ter, com o editor de polícia, uma conversa séria sobre os furos que o jornal levava da concorrência.. Eram amigos, por isso convidara-o a ir a seu apartamento, onde morava sozinho. “ Parece que todos os jornais sabem as coisas antes da gente”, dissera, ao fazer o convite.
Chegando ao apartamento, o editor de polícia tocou a campainha várias vezes. Não sendo atendido, empurrou levemente a porta, que cedeu ao toque. Abriu-a e viu, no chão, o editor-chefe, morto.
- Alô! É da redação? Rapaz, o Osmar acaba de morrer! Parece ter sido um enfarte. Quem me disse? Ninguém. Fui o primeiro a saber.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

ANTIKAFKA



Amanheceu, naquele dia, transformada em um ser humano. Sem as oito pernas e asas, não conseguia andar rente ao chão, subir pela paredes, tampouco voar. Sem antenas, não podia comunicar-se com as outras. Manteve-se, por isso, encolhida a um canto da caixa de esgotos. Todas evitavam-na horrorizadas, ou por medo ante um inimigo tradicional, mesmo pequeno, ou por sua aparência repulsiva. À noite, suas duas únicas pernas e dois braços impediam-na de subir pelas tubulações gordurosas. Comia apenas restos, deixados pelas demais. Não conseguiu adaptar-se ao lugar, à solidão, tampouco resistir à fome e à umidade. Morreu dias depois. Apodreceu e foi comida pelas semelhantes.

TRAUMA



Após situações traumáticas, crianças costumam ter comportamentos estranhos, explicaram os sábios aos milionários pais daquele menino que permaneceu um ano sequestrado, em vila do interior . Eles só não entendiam o real significado das palavras que o menino, entre longos períodos de silêncio, repetia:
- Pipa, fubeca, mão-na-mula, pião, bafo, salve-o-amigo, malha, taco, garrafão, queimada.
Enquanto, pela janela da mansão, olhava , saudoso, o horizonte.

A FOTO DE HITLER



- O autógrafo do Hitler é que torna esta foto tão valiosa. Além disso, tem uma história interessante: foi tirada em 1936, em Berlim e pertencia à família de uma das crianças que aparecem ao lado do fuherer. Ao final da guerra, já adulta e temendo ser vítima de alguma acusação de nazismo, ela decidiu manter a foto escondida, o que ocorreu por 50 anos, até seu falecimento recente. Precisando de dinheiro , uma sobrinha decidiu vendê-la. Foi assim que a adquiri, na Alemanha e a trouxe para o Brasil. Ela resistiu ao tempo, à. distância e ao medo.
- Vou comprá-la.
Após pagar, o judeu Samuel Rabinovich, diante do antiquário atônito, rasgou a foto em pedacinhos.

DEPOIS DO ASSALTO



O policial era a fúria. Olhos em chamas, gesticulava energicamente o braço esquerdo, enquanto o direito, abaixado rente ao corpo, segurava o revólver. Incitava a que se aproximassem homens , mulheres e crianças que , à distância, olhavam os dois homens algemados, ensanguentados e deitados no chão da lojinha que haviam tentado roubar, momentos antes.
- Gente assim merece tudo de ruim. É tudo filho da puta.Quem quiser, pode bater. Não sejam covardes. Eu seguro qualquer bronca.
E houve quem, timidamente, desse tapa, pontapé e até cuspisse nos prisioneiros, enquanto os demais assistiam , impassíveis. Ninguém tinha raiva; todos tinham medo.

terça-feira, 22 de abril de 2008

POBREZA VERSUS DESEJOS



Casal muito pobre quando veio do nordeste, foi morar em uma quarto de pensão na zona do meretrício. De noite, ao voltar do trabalho como servente de pedreiro em uma obra, o desafio dele tem sido recusar oferecimentos de prostitutas. Ela, quando, por alguma necessidade, sai à rua, precisa driblar convites de homens.
Há algumas semanas, ele está desempregado e há dificuldade para encontrar colocação. A piora da situação financeira tem gerado o inevitável desgaste no relacionamento, com a mulher sempre evitando-o, queixosa da penúria.
Continuam, com intensidade, as propostas financeiras dos homens para ela e os convites das prostitutas para ele. Por isso, os demônios apostam: quem vencerá primeiro, a pobreza ou o desejo?

A FORTALEZA



Até o governador fez questão de ir à cidade ouvir as explicações do homem que tentara destruir, com uma bomba, a fortaleza quinhentista. Pois este homem, surpreendido pela polícia antes de acionar o artefato, era, nada mais, nada menos, que o professor Aristeu, a pessoa que mais se empenhara na restauração do monumento, cuja entrega solene à população fora marcada para dali a uma semana.
O professor explicou tudo. Disse que sua luta de 30 anos pela recuperação da fortaleza fora heróica. Ninguém o ouvia de início, ninguém ligava para a importância histórica do monumento. Enfrentou Deus e o diabo para fazer valer seus argumentos. Foi considerado louco, perdeu a saúde, o emprego na universidade, a família o abandonou. Mas nada o desviou de sua luta que, ao final, foi vitoriosa.
- A recuperação da fortaleza tornara-se minha única razão de viver. Ao atingir tal meta, decretei minha morte..

DEUS É JUSTIÇA




- Lembra daquele cara esquisito que apareceu no bairro, ficou alguns meses, e sumiu? Aquele com a capa de chuva, escrito “ Deus é justiça” nas costas?. Barbudo, com um prato de lata na mão? Que apareceu aqui um dia antes de matarem o Cirilo?
- Lembro. Vagueava de dia, sumia de noite. Não falava. Com fome, punha o prato sobre o balcão de um boteco e comia o que pusessem nele.Lembra quando sumiu?
- Claro. Foi no dia seguinte ao assassinato do Germanão, amigo do Cirilo ( os dois vieram juntos de Pernambuco, lembra?). Por falar nisso, quem matou aqueles dois?
- Ninguém sabe.Voltando ao “Deus ...”: sujeito esquisito, não?

sexta-feira, 18 de abril de 2008

PAPÉIS TROCADOS



“Aos dezoito anos, fugi de casa com um namorado que, por ser negro, minha família, rica e tradicional,não aceitava. Tivemos uma filha e nos separamos dois anos depois.Meu segundo companheiro, viúvo, tinha uma filha.Vivemos juntos por um ano, até que ele morreu.Desesperada, com duas crianças pequenas para criar, voltei à casa de meus pais, que aceitaram-me de volta, nas seguintes condições: diríamos que minha filha legítima era a branca, a negra era adotada. E assim foi. Mantive o segredo por décadas e só agora, ao sentir aproximar-se o fim, decidi redigir este texto,cujo teor não poderá ser revelado antes de minha morte . ”
Feita a leitura , pelo velho advogado da família, as duas irmãs olharam-se impassíveis.
- É só isso? Indagou a branca.
- Podemos ir embora agora?, perguntou a negra.
Beiravam os 70 anos . Vidas sem espaços para traumas.

OS DESCONHECIDOS



Homens, mulheres, crianças, jovens, velhos, dezenas, talvez centenas, estavam todos nervosos, até que ele apareceu. Então, perderam as inibições e acercaram-se dele, cumprimentando-o, abraçando-o, acariciando-o e agradecendo. Eram-lhe todos desconhecidos e, por instantes, ficou denorteado,não só com o assédio, mas, também, pelo fato de nunca ter estado ali antes.Mas, sentindo-se feliz como nunca, ele que sempre fora um solitário, retribuiu cumprimentos, abraços e carinhos. Por fim, dirigiu-se à jovem, a seu lado o tempo todo e que parecia diferente dos demais, e quis saber o que estava acontecendo.
-Lembra o costume que você tinha de, ao passar diante de um cemitério, escolher aleatoriamente uma tumba e orar por quem ali jazia? De acender velas em túmulos abandonados? De rezar Pais- Nossos ao passar por féretros, cruzes nas estradas, de vítimas de acidentes fatais? Os que tiveram os caminhos póstumos iluminados por suas preces estão aqui, agora, para iluminar o seu.

UM MINUTO, POR FAVOR!



A enfermeira que iria levá-lo à sala de cirurgia, para extração de um tumor cerebral, estava entrando no quarto, quando ele disse:
- Um minuto, por favor!
Ela deu meia volta e saiu. A esposa, que lhe fizera companhia em todos os dias de internação preparatória , fechou a porta. Haviam decidido fazer amor naquele instante. A chance dele sobreviver à operação era de 50%.

A escolha



Ela estava ali porque não suportaria viver sem o homem que amava, tampouco poderia viver com ele.
Ele estava ali porque não suportaria viver sem a mulher que amava, tampouco poderia viver com ela.
Ambos estavam ali por não terem conseguido superar o último conflito com os seres que mais amavam.
E, ao invés de se atirarem da ponte nas águas revoltas , olharam-se, reconheceram-se e descobriram que se amavam mais do que à morte.
Salvara-os a escolha do mesmo local e momento para o extremo ato de desespero.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

POR EDUCAÇÃO



Permitiu que o homem sentasse à sua mesa, na lanchonete. Ele perguntou se não lembrava dele. Suas famílias teriam sido vizinhas trinta anos atrás, em certo bairro da cidade. Precisava falar-lhe porque, ultimamente, sonhava todos os dias com uma ofensa que fizera a ela e sua família, na época. Acordava , a cada manhã, com sentimento maior de culpa. Contou-lhe o tipo de ofensa e queria seu perdão para aliviar a alma.
- No que me diz respeito, está tudo esquecido
Sem a tonelada às suas costas, o homem levantou-se rápido, agradeceu e saiu. Ela continuou tomando calmamente o café. Não tinha a menor idéia sobre tudo o que ele falara. Ouvira-o, talvez por educação.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A ÚLTIMA RENÚNCIA



Jurou nunca pagar aluguel. Só casou quando tinha residência própria. E mais: prometeu aos cinco filhos que não morreria sem ter dado uma casa para cada um. Por décadas sua vida resumiu-se a trabalhar e economizar com tal objetivo, renunciando a lazeres, viagens, conforto. A mulher, resignada, acompanhou-o em tudo.
A grave doença o pegou quando ainda faltava a um filho- o mais novo- ganhar a casa. No quarto do hospital, afligia-o menos seu destino fatal e mais a possibilidade de não cumprir a promessa feita a si e à família.
No dia derradeiro, a mulher fez questão de ficar alguns minutos a sós com ele , após o quê chamou os filhos para que assistissem à morte serena do pai.
Depois do enterro, foi para casa, pegar suas coisas e mudar-se. Na conversa restrita com o marido,mostrara-lhe a escritura de doação, para o filho mais novo, da casa em que moraram por 40 anos.

FLAGRANTE DE ADULTÉRIO



Os policiais arrombaram a porta , entraram, mas na casa não havia ninguém. Ralharam com Edu e foram embora.Ele não entendeu nada. Tramara tudo direito para libertar-se legalmente da mulher, Elza, sem assumir responsabilidades.Convencera um rapaz da vizinhança, Revandir, a conquistá-la. Completada a sedução, marcaram a data em que, acompanhado de policiais, surpreenderia os dois na própria cama. E, agora, não encontravam ninguém.
No outro dia, recebeu um recado de Elza: queria o divórcio, para casar-se com Revandir. O rapaz apaixonara-se por ela e lhe revelara todo o plano.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

NO CARRO DE TRÁS



Presta atenção no casal do carro de trás.Observa como ele procura mostrar-se espirituoso, faz gestos charmosos enquanto fala. Nota como ela ouve, sorrindo, tudo o que ele diz e, ao falar, gesticula com certo coquetismo. Essa aparente superficialidade não esconde que, de certa forma, entendem-se. Repara como evitam tocar-se. Ele afastou-se um pouco quando ela levantou o braço esquerdo para ajeitar os cabelos; ela fez o mesmo quando ele virou-se para pegar algo no banco de trás. Mas roçam-se o tempo todo, com as pontas dos dedos, quando desejam pontuar algo na conversação, o que mostra que anseiam por intimidade. Que conclusões tiro disso? Uma feliz: vivem a expectativa do amor, a primeira e melhor fase na relação homem/mulher . Uma trágica: farão tudo para chegar à segunda fase... e conseguirão.

O PLANO



Foragido, após oito anos preso por assalto e tráfico de drogas, Balduíno apareceu na casa de Ceres para cumprir a antiga promessa de levá-la consigo.


Ela o atendeu, à porta. Estava diferente: gorda, cabelos desgrenhados e, ao cumprimentá-lo, deixou ver uma falha lateral na dentadura.O desapontamento de Balduíno foi tão concreto quanto o revólver que trazia à cintura.

Após algumas palavras formais, e sem nenhuma referência ao motivo que o trouxera até ali, despediu-se, não assegurando retorno.

O plano de Ceres deu certo.

PLATÕNICOS



Por anos, beijaram-se, esfregaram-se , trocaram palavras de amor. Beijos, nos jogos de dados ( um ponto, beijo na testa; três, na face; cinco, na boca); esfregações, nas danças das festinhas; palavras de amor, nos ensaios das peças românticas da escola.
Depois, ela casou-se com um primo distante e foi embora.
Depois, ele casou-se com a filha da vizinha.