terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A mãe, o túmulo e a árvore


Naquela manhã de alto verão, ao chegar no cemitério, viu trabalhadores cortando a frondosa árvore próxima do túmulo de seu filho. Ela protestou.Os operários não interromperam o serviço, feito sob sol forte. Sugeriram-lhe que fosse reclamar na administração. Foi.
- A retirada da árvore precisa ser feita, minha senhora. As raízes estão forçando as tubulações subterrâneas de água e podem rompê-las- explicou o administrador.
Ela decidiu queixar-se ao secretário de obras, chefe do administrador. Ele explicou que nada poderia fazer, por ser o serviço técnicamente necessário. Resolveu, então, reclamar ao prefeito, amigo da família ,que a recebeu em seu gabinete.
Após consulta ao secretário de obras, o prefeito disse-lhe que não poderia atendê-la.
- Mas não se preocupe. No lugar da árvore, mandarei fazer um lindo canteiro de flores- consolou-a.
Não argumentou. O prefeito não a entenderia; ninguém, a entenderia. No outro dia amanheceu,, fincado na lateral da tumba,  um objeto que ficaria ali, por todo o verão: um guarda-sol.

O santo esquecido


São Frei Sisto, de Pueblo Rojo tinha sido canonizado havia 500 anos e o motivo fora o martírio. Recusara-se a entregar, a um bandoleiro, o cálice de ouro sagrado de sua igreja e fora morto . Nestes  casos, a Igreja Católica não exige milagres para canonização.Ocorreu um martírio.
Pueblo Rojo não existia mais. A cidade fora destruída em uma das guerras coloniais deflagradas logo após sua canonização. Por isso, não surgira uma tradição de devotos que invocassem a intercessão de São Frei Sisto junto a Deus, por milagres. Era um santo sem milagres, esquecido, lembrado apenas nas raríssimas vezes em que alguém lia a hagiografia oficial da Igreja
Mas naquele dia, São Frei Sisto tinha certeza: havia sido invocado. Foi, ansioso,  ao local de onde lhe dirigiram a oração. Era uma igreja, em Assis. Uma garotinha, de cerca de quatro anos, pedia que seu cãozinho sarasse de uma doença muito grave. . Orava sob a imagem de São Francisco, cujo nome pronunciara errado.  

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os kare e o cosmos



Quanto mais se aproximavam da aldeia dos kare, mais os cientistas ficavam excitados ansiosos. Desde os tempos coloniais, estes índios nunca tiveram contato com brancos e, por sugestão dos indianistas que os descobriram há 30 anos, foram mantidos isolados. Houve apenas um rápido contato , entre  um indianista e um dos  índios,. Do encontro, resultou a gravação de uma tentativa de conversa . O índio expressava-se em dialeto totalmente desconhecido , que  ficou sem tradução.
Há seis meses, instrumentos  da NASA captaram sons  do espaço  exterior e, em 30 segundos  gravados, observaram-se  nítidos sons de uma fala. A descoberta foi sensacional. Era a primeira evidência de vida inteligente no espaço. Eletrizante foi a constatação, de um cientista brasileiro, de serviço naquela agência, de que a linguagem cósmica assemelhava-se ao dialeto kare. Estabelecer contato com estes indígenas e traduzir seu idioma seria, assim,a obtenção de um meio de comunicação com os alienígenas, passo fundamental para a descoberta do maior de todos os mistérios: as origens remotas da humanidade.
É por isso que os cientistas dirigiram-se ansiosos à aldeia.Entretanto, ao chegarem ao local onde ela deveria estar ,não encontraram ninguém. Os kare haviam sido dizimados pela covid.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Rouxinol não precisava daquilo


- Vim aqui , Rouxinol, pedir para você voltar a cantar no bar. Sei que não precisa daquilo, mas o pessoal sente sua falta.
Era o dono do bar , o mesmo que  dissera a Rouxinol,  um mês atrás, que ele não podia  mais se apresentar porque seria substituído por uma banda jovem, de guitarras elétricas.” A gente precisa se modernizar, né?”, justificara, então.
Rouxinol, aposentado, não precisava daquilo, mesmo. Mas gostava de cantar, no varandão em frente do boteco, sambas canções, boleros, sucessos da MPB, serenatas. Tinha uma linda voz ( daí o apelido), tocava bem  violão.Em troca, exigia apenas cerveja e tira-gosto de graça.
Ficou de dar, depois, uma resposta sobre sua volta. Então soube, por um amigo,que a banda jovem aumentara o movimento do bar. Mas os novos freqüentadores eram  garotos, adolescentes, sem dinheiro. Ocupavam todo o varandão, dançavam, faziam muito barulho, mas não consumiam nada. E os fregueses antigos, de mais idade e avessos às modernidades, passaram a consumir suas cervejas e  tira-gostos em outro boteco.
- Para complicar, sábado passado, a banda não se apresentou porque faltou energia elétrica no varandão e não puderam ligar as guitarras- informou o amigo.
 Rouxinol entendeu, então, porque o chamavam, de volta. Recusou. Não precisava daquilo, mesmo.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Ananias e os moleques


Ananias, dono do depósito de sucatas, era sovina. Não casou, não teve filhos e morava  na mesma casa velha que servia de escritório a seu estabelecimento . Tinha apenas um funcionário,  jovem meio retardado, que trabalhava como vigia noturno.
Para seu ferro-velho acorriam todos os vagabundos e miseráveis do bairro, oferecendo-lhe vidros, sucatas, latas vazias e outros materiais,pelos quais pagava alguns centavos por quilo e que depois ficavam desorganizadamente  amontoados no terreno.
As latas chegavam em grande quantidade, principalmente porque os moleques do bairro participavam do fornecimento. Ananias não tinha prensa,nem funcionário que fizesse o trabalho e por isso, exigia que as latas fossem entregues amassadas.
Os moleques,então, colocavam areia dentro das latas, que ficavam mais pesadas.
Depois de muito tempo tendo prejuízo, Ananias descobriu a fraude. Passou a comprar apenas latas intactas. Quem as  amassaria, então, para posterior entrega aos atacadistas? A solução encontrada, é óbvio, foi a que não lhe aumentaria os custos: o vigia  passou a fazer  o serviço à noite, entre uma ronda e outra.
Então, enquanto o vigia não estava fazendo a ronda, os moleques furtavam sucatas que , no outro dia,eram, vendidas para o próprio Ananias.

O menino


O menino está ali, como tantas vezes antes. Vivaz, sonhador, viajando por mundos imaginários, regiões idealizadas, onde os perigos existem,mas ele os enfrenta e é sempre vencedor. O menino se vê ganhando campeonatos de futebol, sendo ele o  Messi; tocando guitarra e cantando com os Beatles,sendo ele Paul  Mac Cartney. Navega por mares tropicais; corta a neve com trenós.
Ele já é um homem idoso, um intelectual reflexivo, amargo, amargor alimentando por tantos conhecimentos e experiências vividas.  Por isso, gosta tanto quando o menino aparece. Ele o faz abandonar sua sisudez; sombras de sorriso aparecem em sua boca; reflexos pálidos de luz em seus olhos.
Por isso esforça-se para manter  o menino por perto. Nem sempre é fácil. Apesar do menino ser ele mesmo.

O ator



Quando o grande ator brasileiro Tarcísio Roberto sofreu o derrame , eu estava na Italia, cumprindo contrato com uma companhia cênica de lá. Só voltei ao Brasil três meses depois e resolvi  visitá-lo em sua casa.
Não éramos amigos; tivemos poucos contatos, mas não poderia deixar de, como colega, prestar-lhe pessoalmente minha solidariedade.Antes de levar-me até ele,sua mulher pediu que não falasse sobre teatro. Compreendi. O derrame o deixara impossibilitado para atuar. Seria um assunto traumático.
Conversamos sobre amenidades.Notei que, a não ser por ligeira paralisia no lado esquerdo do rosto  e dificuldade para pronunciar certas palavras, a moléstia não o deixara com sequelas físicas muito acentuadas.
- Até outro dia. Espero vê-lo,novamente, em ação- disse-lhe, ao me despedir.
Ao ouvir a palavra ação, seus olhos  brilharam. Levantou-se da cadeira.
-  Sim. Fui Júlio Cesar e Henrique VIII, de Shakespeare! Fui Édipo Rei, de Sófocles. Fui Ulysses, de Homero!Eu sou..
Calou-se. Sentou-se, as duas  mãos  espalmadas no rosto e cabeça baixa. Sua esposa , com um sinal,pediu que nos afastássemos. À caminho do portão, explicou-me:
- É por isso que evitamos dizer qualquer  coisa que o faça lembrar-se do teatro. Sua maior angústia não é a impossibilidade de representar. É lembrar-se de todos os personagens que  foi e não recordar quem ele é.


Catando latinhas

Catando latinhas vazias, nas praias,  para vender, eles conseguiram uma alternativa pela sobrevivência, após ficarem  desempregados.
Catando latinhas eles conheceram Dojão, que lhes exige, uma vez por semana, metade do resultado da coleta.
Difícil não obedecer a Dojão, homem musculoso e de amigos estranhos. Além de inteligente,pois não extorque dinheiro. Exige sua parte em latinhas, que depois vende no mesmo depósito de ferro-velho em que todos vendem. Assim, é visto apenas como mais um honesto catador de latinhas da região.
- Mas hoje, se tudo der certo, isso vai acabar- disse Palmiro, um dos extorquidos.
Naquela tarde, Dojão seguia para o depósito, para vender suas latas, quando foi barrado por policiais militares.
- Deixa eu dar uma olhada neste saco- ordenou um deles.
- Sem problema- respondeu tranquilamente Dojão.
- O cara anônimo que nos telefonou estava com razão – disse o policial que vistoriou o saco.
Cinco latinhas estavam cheias de maconha.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A saída do Ditão



Ditão era trabalhador em balancim, vivia de pintar edifícios , tendo por apoio apenas  cordas e uma tábua de madeira. Foi sua coragem que levou lza a apaixonar-se por ele. Via-o assim diariamente, trabalhando  a 30, 40 metros de altura. Ele correspondeu, sentindo-se envaidecido por tal admiração.Em pouco tempo, estavam morando juntos.
O que ele escondeu dela foi que,para exercer tal trabalho, precisava de uma doses de bebida alcoólica, cachaça, de preferência. Sóbrio, jamais subiria em um balancim. Não chegava à embriaguês; bebia tão somente para ter mais coragem.Vício,mesmo,só tinha o do cigarro.
Após alguns anos  juntos, Dilza tornou-se evangélica e o pastor  convenceu-a de que não podia viver em concubinato com Ditão. Era pecado.Tinham de  se casar na igreja. Ela, então, procurou a conversão do companheiro. Para isso, é claro, ele deveria parar de beber e de fumar.
Ditão passou a viver o dilema:. se deixasse a bebida, jamais poderia trabalhar.Se confessasse à mulher que precisava beber para poder trabalhar, acabava a admiração dela por ele ( poderia até deixá-lo, temia). Precisava de uma saída alternativa.
Foi  essa a história que contou ao policial que o surpreendeu fumando maconha.
     

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Apelidos na balsa


- Bom dia! Tudo é alegria. Baixou o preço da mercadoria!
Durante anos , ao utilizar a balsa de veículos que faz a travessia entre Santos e Guarujá, Márcio ouviu o vendedor de queijadinha repetir o mesmo verso. Por isso, apelidou-o de “ Uma rima”.
Aquele velho que, humildemente, pedia uns trocados e,quando a pessoa não dava, passava a rogar-lhe, em altos brados, as mais terríveis pragas, ele passou a chamar  de “ Ira divina”.
“ Assoador” foi o apelido que deu ao rapaz que, por anos a fio, aproximou-se de seu carro para lhe vender lenços de papel. E por vários outros nomes identificou exóticas personagens que ganhavam a vida comercializando coisas nas plataformas de embarque.
Hoje, por força de uma série de percalços, ele é uma delas. Vende, em copinhos descartáveis, cafezinho tirado de uma garrafa térmica.
Que apelido já teria alguém dado a ele?