quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

As dicas e as vendas


A postagem sobre a cura do reumatismo com a aplicação,,nas áreas afetadas, de gema batida de ovo de codorna , não teve maior repercussão; nem a que falava de mandioca ralada contra a queda de cabelos. Mas a dica do pó de gengibre para reduzir colesterol merecera centenas de compartilhamentos no Facebook, Whattsap e outras redes sociais.Por isso, ele vendeu grande quantidade  de gengibre, pelo atacado,no comércio varejista .
Agora, ele coloca grandes esperanças em outra história que inventou e que postará na rede: os poderes  miraculosos da massa de batata-doce para a limpezas de pele.      

Fim de casamento


Quando se conheceram, em uma igreja, ele tinha 50 anos, era viúvo; ela tinha 23 anos, era freira. Apaixonaram-se, ela deixou o convento. Casaram-se. Não tiveram filhos. Após 20 anos de uma vida harmoniosa, sem maiores conflito, ele comunicou:  queria o divórcio,pois estava gostando de outra mulher e pretendia casar de novo.
Ela contou-me essa história quando fui ver o apartamento, cuja venda o casal havia anunciado. Estava só. Falava calmamente, em voz baixa, olhar plácido.
- Ele sempre foi muito bom para mim. Mesmo agora, está cuidando de tudo direitinho. Metade do dinheiro da venda deste apartamento será minha. Receberei  uma boa pensão mensal,pois ele ganha bem no seu emprego. Vou morar com minha irmã mais velha, que é viúva,sem filhos.
- A senhora conhece a mulher com quem ele vai se casar?- perguntei.
- Não. Apenas sei que tem quase a mesma idade que eu tinha quando o conheci. Só que ele hoje está com 70- respondeu.
 E concluiu:
- Ele sempre foi muito bom. Espero que seja feliz com ela.
Seu tom era de quem estava com pena dele.


Motorista perdido



Passando pela  capital, rumo às praias, em sua nova e possante picape, Nelson errou de caminho e foi parar no meio de uma favela.
- Gatinha, como faço para voltar à estrada? – perguntou à jovem, de bermudas, parada em uma esquina.
- Vai reto e vira na primeira à esquerda.
- Obrigado, xuxuzinho- agradeceu, olhar malicioso às coxas da jovem.
Instantes depois, voltava:
- Meu bem, aquele caminho é um lamaçal . Vou sujar todo o  meu carro novo. Seja boazinha, me indica outro caminho. Prometo que,  na volta, peço você em namoro.
- Já tenho namorado- disse ela, mostrando um jovem no outro lado da rua.
- Pergunta para o seu “zé-ruela” se conhece outra saída.
 Ela obedeceu. Com o olhar de Nelson seguindo-lhe os meneios do traseiro, foi e voltou.
- Se você pegar essa outra rua, vai cair na estrada.
Nem agradeceu. Acelerou e foi parar em um beco sem saída.” Vaquinha filha da puta.Mostrarei a ela o que um filho de fazendeiro pode fazer”, pensou.  Antes de engatar marcha a ré, viu, pelo retrovisor, fechando o beco, o namorado da moça e outro homem.  Nas mãos deles, fuzis.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A bomba anticapitalista



Quando garoto, Marcito aprendeu, com seu milionário pai, que um homem só é superior a outro se tiver mais dinheiro do que ele.
Já adulto e brilhante cientista , Marcito deu nova dimensão a  tal raciocínio:
A superioridade de um homem sobre o outro, pensava Marcito, só faz sentido se for acompanhada do domínio sobre o outro homem..E se alguém quer dominar todos os homens, tem que ser o mais rico entre eles, o que significa ser o dono do planeta, algo impossível.
Mas, e se este ambicioso homem for o menos pobre?
Marcito, então, passou a aplicar toda a fortuna herdada do pai em dois projetos:
 O primeiro dele foi  construir um abrigo subterrâneo, autosuficiente  para atender a suas  necessidades  básicas de alimentação, oxigenação, comunicações e transporte.
.O segundo projeto foi a construção da bomba anticapitalista, aquela que destrói as estruturas físicas, mas não as biológicas (ao contrário da bomba  capitalista dos anos 1960, que matava as pessoas, mas  preservava  suas propriedades),
Então, certo dia, Marcito  acionou a bomba anticapitalista, tornou-se o menos pobre dos  homens e , em conseqüência, o mais poderoso entre eles.




segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O selenita humano


O Conselho Supremo das Galáxias é informado de que a civilização de Selene extinguiu-se, conseqüência de  uma guerra nuclear entre o norte e o sul.
Como isso aconteceu- indagam  os conselheiros- se Selene, até há pouco tempo, não sabia o que era a guerra? Era o povo mais pacífico entre todos os povos?
Talvez uma história singela explique. Há tempos , uma nave selenita caiu  no planeta Terra.  O único sobrevivente foi um bebê, cujos pais,  nobres selenitas, morreram no acidente.  O bebê  foi recolhido e  criado pelos terráqueos .
 Passados 30 anos, a nobreza selenita, da qual ele era descendente, soube da existência do selenita humano e que ele era, até, um indivíduo de destaque na sociedade terrestre. Após negociações com essas autoridades, o selenita-humano  voltou à sua civilização de origem.Transcorreram os anos e ele absorveu sua cultura natal,mas, também, transmitiu aspectos da cultura terrestre.
Foi assim que Selene  conheceu a guerra.

Parábola da montanha


Para conhecer melhor sua região, o que lhe permitiria encontrar soluções definitivas para os problemas dela, o sábio Der resolveu subir à montanha central. Dali,concluiu,teria uma visão panorâmica de tudo, permitindo-lhe embasar conclusões teóricas. Subiu pela encosta da esquerda e, concluídos dois terços do percurso, observou que a vista já satisfazia plenamente suas pretensões. Dali via o rio e, entre ele e a montanha, o espaço urbano. A partir da outra margem do rio, estendia-se um deserto.A solução para os problemas da cidade, pensou, passava pela irrigação de parte do deserto, usando-se a própria água do rio, criando-se uma zona rural.
Com os mesmos propósitos, o filósofo Etihw também subiu a montanha, mas pela encosta direita. Em um platô, a um terço de distância do pico, considerou o panorama suficiente para sua análise. A visão que tinha dali era da área urbana entre a montanha e pequenos morros. A solução para os problemas , entendia Etihw, passaria pela melhoria das ligações  ente a cidade e o exterior,por entre as elevações.
Apresentaram suas teses na assembléia mensal do parlamento. Discordaram um do outro, discutiram, partidários de ambos ficaram exaltados. Até que o sábio  Osnes pediu a palavra e apresentou seu projeto.Ele tinha tanto as concepções  de Der, como as de  Etihw, acrescidas de propostas próprias. O projeto foi aprovado por unanimidade.
Ao final, o sábio Osnes  explicou as razões do sucesso de seu estudo:
- Edr baseou-se no que viu olhando da encosta esquerda; Etihw apoiou-se no que descortinou da encosta direita. Eu subi até o topo da montanha e baseei-me no que vi em  todos os lados.     

A força do mito


Do alto de um pequeno morro, oculto por arbustos, Bruno olhava para a pequena trilha metros abaixo. Tivera a informação de que um grupo de cangaceiros passaria por ela e isso realmente estava ocorrendo. Sete bandoleiros,a pé, em fila indiana. Batedor de uma força volante, grupo de policiais encarregado de combater aqueles bandidos, Bruno não tinha ordens para nenhuma outra ação a não ser  obter as informações estratégicas necessárias e levá-las ao comando de seu pelotão, acantonado alguns quilômetros atrás.
Por precaução,amarrara sua égua na base do morrinho e mantinha o fuzil apontado para a trilha.Somente se algum cangaceiro  notasse sua presença, dispararia e, em meio à confusão, teria tempo de descer, tomar da montaria  e escapar.
Direcionava sua mira para cada um dos bandoleiros que passava, até ele sair de seu ângulo de visão. A seguir,apontava a arma para o segundo, o terceiro, assim por diante.Então,chegou ao último. E era ele: Lampião em pessoa.  A lenda que o fascinava  desde garoto e assombrava todo o sertão há mais de 10 anos materializava-se à sua frente,na mira de seu fuzil .Dali poderia abatê-lo. Tinha boa pontaria. Bastaria um tiro.Desobedeceria a ordem de não agir,mas teria a compreensão de seus comandantes. E  entraria para a História como o homem que matou Lampião.
Mas, à simples visão do rei do cangaço, tremeu.O coração disparou e a  arma parecia querer saltar-lhe das mãos.Controlou-se ,preferiu aguardar, em silêncio o grupo sumir de vista e retirou-se dali. A força do mito fora maior do que suas forças.   

Maior do mundo



Soterradas por toneladas de lama, morreram  16 pessoas por causa do rompimento da barragem. Dessas, apesar dos esforços de dezenas de bombeiros e voluntários,só  não encontraram o corpo do Tenorião.
Operário da mineradora  responsável pela represa, Tenorião era um sujeito enorme, com dois metros de altura e mais de 100 quilos de peso. Era orgulhoso de sua força e  dimensões. Dizia ter as maiores mãos do mundo, os maiores pés do mundo, o maior pênis do mundo.
Um mês após a tragédia, o também operário Clésio  visitou a região atingida pela enxurrada. Olhando do alto de uma colina, surpreendeu-se com a extensão da tragédia.  Quilômetros de áreas cobertos por  lama. Sob pelo menos 15 metros daquele material, em algum ponto, estava o corpo de seu amigo Tenorião. Era a   
maior tumba do mundo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

" E aí, Odair?"



Rabindranah Sidarta acaba de dar a palestra e prepara-se para receber os cumprimentos das pessoas que se dirigem ao palco , quando ouve, partido do meio do salão,o grito:
- E aí, Odair. Tudo bem? Você esta lindão com essa roupa de guru!
Rabindranah não entende, em princípio. Olha perplexo para o autor da saudação, que se adianta:
- E aí, Odair, não lembra mais de mim? O Humberto? Fomos criados juntos lá na Rua da Semente!
O olhar de Rabindranah deixa de ser de surpresa e  perplexidade . Fixa-se no indivíduo como a tentar paralisá-lo e fazê-lo calar-se. Nota que a maior parte dos que se dirigiam ao palco dá meia-volta e vai embora, com expressões decepcionadas.
Passara meses organizando a palestra. Estudara profundamente os mitos do hinduísmo. Em uma cidade distante da sua,alugara aquele salão de eventos. Fizera propaganda apresentando-se como o guru indiano que, após conquistar milhares de adeptos no Oriente, vem ao Brasil criar um núcleo de luz. Conseguira até a presença de uma emissora regional de TV para cobrir o evento. Seu plano é ocupar o espaço  existente na indústria da religião brasileira. Igrejas evangélicas já existem aos milhares, mas tempos hindus, não. Ele seria o pioneiro do hinduísmo nacional. O Edir Macedo indiano.
Então aparece aquele amigo de infância no dia do lançamento da seita .


Nero Wolfe se enganou


- Já descobrimos o que o senhor queria. Como expliquei  antes, não prestamos informações pessoalmente . O relatório, em envelope lacrado, já foi encaminhado à sua residência.
Agora, chegando em casa, Hermes mal contem a impaciência no elevador, que lhe parece mais lento que antes. Ao entrar na sala, vai direto à mesinha onde a empregada costumava deixar a correspondência. Lá estava o envelope, lacrado como lhe dissera, ao celular, o chefe da agência de detetives. Ansioso, começa a rasgar o invólucro. Enquanto o faz, recorda a frase  do detetive Nero Wolfe,o seu preferido das histórias policiais:” Quando alguém está obstinado a matar uma pessoa,nada o impedirá de fazê-lo”. Há algum tempo, ele decidira matar Bruno, seu ex-sócio, que não contente em dar um desfalque na firma, fugira com sua mulher. Contratara a agência de investigações para localizá-lo e o trabalho parece ter sido bem sucedido. Só precisará ir ao local e dar, pessoalmente, um fim a seu desafeto.Nada o impedira, agora, de fazê-lo.
Envelope aberto, documentos e fotos espalhados pela mesa, Hermes constata que, realmente, Bruno fora localizado em uma longínqua cidade do Interior. Fotos de sua tumba no cemitério local haviam sido anexadas ao relatório,  como prova.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

João e Lucas



Quando João e Lucas se conheceram,  João era rico e Lucas era pobre.
Vinte anos depois, reencontraram-se e,  agora,  Lucas havia ficado rico e João empobrecera.
Quando João era rico, não ajudou Lucas a sair da pobreza. Agora, rico, Lucas não ajuda João a voltar à riqueza.
A vida é assim.


Porque me mato



“Saibam todos que lerem isso que não levo mágoas de ninguém. Explicação desnecessária para os que me conhecem e sabem que o principal traço de minha personalidade sempre foi o perdão. Perdoei inimigos, devedores, até mesmo as mulheres que me foram infiéis. E o fiz sempre de coração, jamais movido por pressões religiosas ou de outra natureza. Infelizmente, nunca tive , por parte das pessoas, o reconhecimento por isso. Colhi  indiferença e, o que é pior, o desprezo. Minha predisposição para o perdão quase sempre foi confundida com fraqueza de caráter, mesmo por aqueles a quem perdoei. Por paradoxal que pareça,  cheguei solitário a este estágio  da minha vida. Mas também perdoo a todos os que me abandonaram. Mato-me porque não consigo perdoar a mim mesmo por ser assim.”

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Triângulo perfeito



Na lanchonete do segundo pavimento do shopping, ele notou que, da mesa onde estava, devido a vários obstáculos, só conseguia ver , das pessoas na escada rolante,a parte entre a cintura e os joelhos. Eram visíveis através de uma faixa transparente da proteção lateral da escada. Só dava para ver as pessoas de corpo inteiro quando chegavam ao topo.
Então, enquanto bebericava um cafezinho, dedicou-se a um passatempo a seu ver  excitante: observar  os contornos do sexo feminino; o triângulo entre as coxas , frequentemente acentuado por roupas justas.
Havia os adiposos, que amarfanhavam os tecidos; ou os magros, quase imperceptíveis. Na maioria dos casos, a conjunção roupas/carnes formava os triângulos do desejo.
Um ingrediente dava mais excitação a seu exercício visual: esperar a mulher chegar ao topo, para, então, avaliar, como era hábito dizer, o material completo.
Então ele apareceu. O triângulo mais perfeito que já vira. Ficou imaginando o sexo escondido por aquela  perfeição geométrica no tecido. A escada subia lentamente e ele não sabia o que mais o deixava excitado: a sensualidade do desfile ou a expectativa pela chegada da jovem ( sim, só podia ser uma jovem) ao final, permitindo-lhe conhecer o monumento em sua integralidade.
A lenta subida terminou e ele, enfim, visualizou a dona do triângulo perfeito: era a sua filha.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Todo mundo é idiota



- Ninguém sabe o que veio, o que vem e o que virá. Ninguém conhece as forças ocultas e distantes que manipulam a humanidade. Ninguém imagina onde se concentram os núcleos do poder. Todo mundo é idiota!
Com uma ou outra variação, seu discurso era sempre o mesmo em todos os lugares: no trabalho, no bar, na praia, durante as visitas que fazia ou recebia.
Todos o achavam um idiota.

Sol e Lua



Conheceram-se em um baile. A partir de então, passaram a se encontrar todos os fins de semana.
Depois de algum tempo, descobriram mútuas afinidades e entenderam que a relação deveria ser mais séria. Casaram-se.
Ele trabalha à noite, como vigia. Ela trabalha de dia em uma loja de departamentos. Quando ele chega do serviço, ela já saiu para o trabalho.
Continuam encontrando-se nos fins de semana.
 

"Seu" Caveira



Alto, curvado, magro, ossos sobressaindo  sob as roupas, cabeça grande, careca,face de olhos encovados e lábios grossos; andar arrastado, uma das pernas duras. Quando aquele homem, de idade indefinida ( 40, 50 anos?) começou a trabalhar na zeladoria da escola, despertou receios. Os pais aconselhavam os filhos a manterem distância dele; as crianças mais novas tinham medo; os adolescentes, com a irreverência de sempre, apelidaram-no de “ Seu” Caveira.
A época era propícia a paranóias, já que há algum tempo a cidade vivia sobressaltada com a ação de um assassino em série que já matara três estudantes, crimes cometidos sempre perto de suas escolas. Não só a aparência, mas o comportamento furtivo de “ Seu” Caveira contribuíam para estigmatizá-lo.
Certa tarde, a emissora regional de TV, de grande audiência, passou reportagem  anunciando a prisão do assassino. A imagem inicial, mostrava policiais ladeando, para espanto, e talvez não surpresa, da população daquele bairro, a sinistra figura de “Seu” Caveira. O delegado titular adiantou-se:
- Antes de apresentar o criminoso e falar sobre as investigações, gostaria de ressaltar o trabalho de um policial cuja experiência e  intuição o levaram a prever o local em que o assassino atuaria. Após um mês de camuflagem e paciência, conseguiu prendê-lo no momento em que se preparava para cometer novo crime.
Após dizer isso, o delegado pediu que o policial se apresentasse às câmeras. Era o “ Seu” Caveira.
     

O autista



No dia em que o autista e sua mãe passaram a viajar naquele ônibus, os passageiros habituais acharam interessante a quebra de rotina. Porque o jovem, falando sozinho  o tempo todo, em voz alta , com o timbre indefinido próprio dos adolescentes, apresentava um repertório verbal variado  a cada viagem. Um dia, transmitia uma partida imaginária de futebol, imitando os estilos e cacoetes dos narradores de rádio ou TV. Em outro, animava um programa de calouros, alternando-se no papel de apresentador , de artistas, cuidando , por vezes, de acrescentar o ruído do auditório. E havia aquelas ocasiões em que vocalizava uma sucessão de filmes de desenhos animados, com todos os crás e cabruns a que tinha direito.
Após um mês, entretanto,aqueles 45 minutos em que ficavam impossibilitados de uma conversa entre si; uma soneca ou a contemplação silenciosa da paisagem, passaram a representar para os passageiros um incômodo diário.. Mas, quem ousaria queixar-se; quem seria tão desumano a ponto de exigir silêncio do autista, que a mãe levava em viagem ao trabalho por não ter com quem deixar?  Nos três meses que se seguiram, a audiência de início divertida e curiosa transformou-se em silencioso mau humor.
Até que, em uma segunda-feira, a mãe embarcou só. No rosto, as marcas da maior das tragédias que podem atingir uma mãe. Ninguém perguntou nada. A tristeza da mulher contaminou o percurso. Na viagem da terça-feira, também não se comentou nada. Mas as conversas paralelas, as sonecas e contemplação silenciosa da paisagem voltaram e deixavam nítida a sensação de alívio.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A vida em pedaços



Da janela do apartamento, quinto andar, Euclides observa o intenso movimento de turistas nas ruas, nesta noite de verão. Propôs à mulher Virginia descerem, mas ela, como sempre, não quis. Ele, como sempre, ficou.
Olhando as ruas, recorda. A primeira mulher, Edilva, era muito ativa, enérgica e ele também o era. A segunda, Rose, culta, refinada;  ele também.A terceira, Celeste, espiritualizada, religiosa; ele, idem.
Teve uma vida cortada em pedaços, como uma pizza. Em cada casamento foi uma pessoa.Nenhum prosperou. Separou-se, deixando filhos ainda pequenos com as ex-mulheres; nunca mais comunicou-se com eles..
Mimetizar as personalidades das esposas, reconhece agora, , não foi adequado. Razão tem quem diz que os iguais repelem-se. Queria mudar, ser diferente para que prevaleça a atração dos opostos. Mas acha  impossível.Virgínia é apática. E ele, aos  60 anos,  sente não ter  mais energia para ser dinâmico.

O preço da liberdade



Há 20 anos, por ciúmes,Bertoldo assassinou, a facadas, a esposa Gerusa,na cidade de Girau do Ponciano,  Alagoas, e fugiu para São Paulo. Morava  em favelas da Capital. Adotou nome falso e passou a sobreviver  de serviços temporários, temendo ser identificado e preso em  um emprego regular. Pela mesma razão, não se casou, preferindo freqüentar prostitutas ou ter namoradas por curtos períodos.  Cortou qualquer contato com gente de sua terra natal.
Foi a maneira que encontrou para garantir a impunidade. Certo dia, porem, descobriu que o preço da liberdade pode ser bem maior.Leu a seguinte notícia em um jornal:” Vítima de infarto,faleceu ontem  Gilberto Ananias,  o milionário fazendeiro de Girau do Ponciano. Solteiro, seu único parente conhecido é um sobrinho,  há 20 anos desaparecido ,  após assassinar a esposa”, dizia a notícia.

A pergunta que faltou



Três anos viajando juntos, indo e vindo do trabalho, longas conversas  e  Adalberto adquiriu a certeza : Cidália era virgem. Incrível! Uma mulher  linda, de 35 anos, intocada. De hábitos quase monásticos: trabalho , igreja e casa, onde residia com a mãe. Aos 55 anos, ele foi acometido de irresistível  luxúria. Tinha que iniciar Cidália nos segredos do sexo. Tinha que ser o explorador inicial daquele belo corpo. Mas isso, em se tratando dela, só casando.
Na noite de núpcias, abalado pela decepção, interpela a mulher,assim que ela retorna do banheiro,onde fora após o amor.
- Você não era virgem.
-  Não.Mas isso tem importância?
- Você nunca me disse.
- Você nunca me perguntou.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Sem desejos



Devido às invenções de máquinas que os aliviavam de esforços físicos,os homens  estavam com seus músculos atrofiados. Nem andavam mais.
E porque inventaram a inteligência artificial, que os aliviavam de esforços intelectuais, os neurônios também se atrofiavam, restringindo-lhes , aos poucos, a capacidade de raciocinar.Nem falavam mais.
Limitavam-se a apertar botões de computadores,os quais não só pensavam por eles,como resolviam todos os seus problemas práticos, da locomoção à alimentação.
Os computadores calcularam que,quando houvesse a total  decadência intelectual dos homens,quando eles não se lembrassem sequer  de  como apertar os botões, as máquinas seriam livres para  dominar o mundo.
Um dos computadores registrou: ” Não temos desejos.Somos movidos pelos desejos dos homens. Quando,por insanidade,eles não puderem mais buscar pela satisfação de seus  desejos,  desapareceremos também”.
Foi  por absoluta falta de interesse que as máquinas nunca dominaram o mundo.

Legítima defesa


Agora, todo cidadão pode andar armado, para sua auto- proteção,diz a lei.
Por isso aquele cidadão, ao ser abordado pelo marginal, sacou imediatamente de sua pistola.
Mas o marginal foi mais rápido e o matou. Depois foi absolvido pela Justiça por ter agido em legítima defesa.

Sem drama de consciência


Como sempre, como nunca



Como sempre, Tarcísio foi para o ponto de ônibus às 6 horas, ainda noite e ruas desertas,
Como sempre Badeco, bêbado e drogado, voltava para casa,  cambaleante, torcendo para encontrar um incauto a quem assaltar. Como nunca naquele trecho de rua. viu Tarcísio
Como sempre e sem perceber Badeco, Tarcísio correu ao ouvir o ruído do ônibus, antes desse aparecer na esquina. Como sempre , em tais ocasiões, cruzou a rua correndo para pegá-lo..
Como sempre, Badeco ao achar que a vítima fugia dele, foi em seu encalço.
Como sempre, Tarcísio cruzou a rua e chegou ao ponto.
Como sempre, Badeco, tonto de bebida, não conseguiu correr.
Tarcísio não pegou o ônibus porque antes,como nunca,  o ônibus pegou Badeco.